2006-11-04

O Corpo Utópico

(...) Fui tonto à bocado ao julgar que o corpo nunca estava noutro sítio, que era um aqui irremediável e que se opunha a qualquer utopia. O meu corpo, com efeito, está sempre noutro sítio. Está ligado a todos os outros sítios do mundo. E, para dizer a verdade, só no mundo é que está noutro sítio. Porque é à volta dele que as coisas se dispõem, é relativamente a ele, e relativamente a ele como relativamente a um soberano, que há um cima, um baixo, uma direita, uma esquerda, uma frente e um atrás, um próximo e um distante. O corpo é o ponto zero do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se vêm cruzar. O corpo não está em parte alguma, está no coração do mundo, este pequeno núcleo utópico a partir do qual sonho, falo, avanço, imagino, percebo as coisas no seu lugar e as ligo assim pelo poder infinito das utopias que imagino. O meu corpo é como a cidade do sol, não tem lugar, mas é dele que saem, que irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos. No fim de contas, as crianças demoram muito tempo até saberem que têm um corpo. Durante meses, durante anos, têm apenas um corpo disperso, e tudo isso se organiza, tudo isso só toma literalmente corpo na imagem do espelho. De uma forma ainda mais estranha, os gregos de Homero não tinham palavras para designar a unidade do corpo. Por mais paradoxal que seja, diante de Tróia, sob os muros definidos por Heitor e os seus companheiros, não havia corpos, havia braços levantados, havia peitos corajosos, havia pernas ágeis, havia elos fascinantes sobre as cabeças, não havia corpos. A palavra grega que quer dizer corpo só aparece, em Homero, para designar o cadáver e o espelho que ensinaram aos gregos e que ensinam agora às crianças, que temos um corpo, e que este corpo tem uma forma, que esta forma tem um contorno, que neste contorno há uma espessura, um peso, em suma, que o corpo ocupa um lugar. É o espelho e é o cadáver que atribuem um espaço à experiência própria, profundamente e originariamente utópica do corpo. É o espelho e o cadáver que calam e apaziguam, e fecham numa clausura que está agora para nós selada essa grande raiva utópica que arruína e volatiliza a cada instante o nosso corpo. É graças ao espelho e ao cadáver que o nosso corpo não é puro espírito, nem simples utopia. Ora, se pensarmos que a imagem do espelho se aloja para nós num espaço inacessível, e que não poderemos nunca estar no sítio onde estará o nosso cadáver, se pensarmos que o espelho e o cadáver estão eles próprios num invencível outro sítio, descobrimos então que só as utopias podem encerrar em si e esconder um instante a utopia profunda e soberana do nosso corpo. Talvez seja também preciso dizer que fazer amor é sentir o próprio corpo fechar-se sobre si, é existir finalmente fora de qualquer utopia, com toda a sua densidade, entre mãos do outro. Sob os dedos do outro que nos percorrem, todas as partes invisíveis do vosso corpo começam a existir. Contra os lábios do outro, os vossos tornam-se sensíveis. Diante dos seus olhos semicerrados, a vossa cara adquire uma certeza, há finalmente um olhar para ver as vossas pálpebras fechadas. O amor, também ele, como o espelho e como a morte, apazigua a utopia do vosso corpo, fá-la calar-se, acalma-a, fecha-a como que numa caixa, encerra-a e sela-a. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte. E se, apesar destas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer amor, é porque, no amor, o corpo está aqui. Michel Foucault [conferência radiofónica de 1966 editada em CD pelo INA]